A travessia tumultuada e apressada dos pedestres fazia o amontoado
de pombas levantar voo por entre a multidão. O farol acabara de se avermelhar,
encerrando o fluxo constante dos carros populares que passavam na alameda Santo
Amaro, na região do Largo Treze de Maio.
Entre os passantes, roupas
simples e surradas transitavam, acompanhadas por outras de linho malpassado. As
gravatas de segunda mão, e os sapatos sem graxa, que se misturavam aos pés à
chinelos, indicavam se tratar de um dia semanal, onde a rotina regia a correria
e os passos contínuos em frente à Catedral de Santo Amaro.
Outros, porém, permaneciam
inertes, sem qualquer pressa pelo abrir do semáforo ou chegada de algum ônibus.
Estes não tinham aonde ir, não faziam parte da correria louca contra o tempo a que
estavam submetidos os engravatados de segunda-mão.
Uma dessas gravatas passou
próximo ao portão da catedral, e o seu portador, depois de uma leve olhadela
por trás do ombro a observar os títulos dos ônibus que lhe ultrapassavam
enquanto seguia em frente a fila do caminhar pela calçada estreita, percebeu de
relance um dos corpos imóveis, a repousar em frente a grade da grande capela. O
corpo inerte pertencia à uma mulher quase idosa, deitada sobre um colchão de
espuma fina e desgastada, com uma das mãos estendida e aberta, mostrando sua
palma já dominada pelas rugas. Alguns cachorros de rua deitavam-se logo ao lado
da senhora, dividindo cobertores e trapos velhos que encobriam o colchão.
O passante de gravata barata, ao perceber a velha estacionada,
teve a impressão de já a ter visto antes. Encarando a fisionomia dura e cansada
da mulher, pensou recordar-se daqueles olhos castanhos e redondos, que agora
expressavam não mais que o pedido e a fome.
Não seria ela, aquela velha vendedora de doces, que a certa época
instalara uma pequena venda numa das ruas adjacentes à sua, no bairro do Jd.
Ângela, mais à zona sul? Não, não poderia ser. Como teria terminado assim? Sem
casa, sem dinheiro ou qualquer tipo de sustento. Estava perdida, e sem nenhum
indício de que iria sair dali tão cedo. Como acabara assim, com cachorros como
companheiros? Certamente as bebidas. Lembrou que a antiga doceira tinha a fama
de viver embriagada quando não estava tomando conta de sua venda. Por fim deve
ter perdido seu negócio por má administração ou rendição ao alcoolismo.
Uma pena; deplorável. O fruto da indisciplina certamente é o
falimento e a perdição, pensou, olhando agora para frente e avistando a numeração
traseira que indicava ser o ônibus que lhe levaria ao local de trabalho que
parava no ponto naquele momento. Correu a dar sinal ao motorista que esperasse,
antes de ter tempo de levar a mão ao bolso e deixar algumas moedas de consolo à
antiga vizinha. Tanto melhor, pensou ao subir os degraus do carro público, pois
que não fosse seu dinheiro suado que servisse de sustento ao fracasso.
O ônibus fechou suas portas partindo com pressa da parada, afim de não ser barrado pelo semáforo que estava prestes a tornar vermelho. Uma jovem de roupas neutras e serviçais chegava agora ofegante ao ponto, na tentativa de alcançar o ônibus em que o engravatado acabara de partir. Não o alcançando a tempo, sentou-se em um dos raros bancos disponíveis para descanso, desejando que o próximo itinerante chegasse rápido. De longe, avistou a mesma senhora a quem surpreendera o anterior engravatado.
Espantou-se com sua condição. Seus cabelos despenteados, suas
roupas muito sujas. Com certeza não se banhava a dias. Será que sentia fome?
Nem ao menos força para pedir restava em suas esperanças, e o que permanecia
era somente sua mão estendida e sua boca muda.
Em sua aparência demonstrava ter mais do que 50 anos, mas sabia
que aquela situação talvez tenha contribuído para seu envelhecimento aparente.
Pelo julgamento da idade, poderia ser sua mãe. Ah sua mãe... sempre guerreira!
Graças a Deus, sua mãe sempre foi trabalhadora e nunca se deixou derrubar por
qualquer situação financeiramente apertada. Nunca teve o melhor, mas sua mãe
lhe sustentara com esforço. Agora, aos 24 anos, conseguia também seguir
mantendo seu pequeno filho de 5, com um pouco mais de brinquedos e bolachas
recheadas que sua mãe lhe provera na infância. O emprego de recepcionista, que
já sustentava há mais de 2 anos num daqueles grandes prédios comerciais da
Faria Lima, lhe permitia mais facilidade do que a mãe tivera como doméstica no
passado.
É preciso sempre sacrificar e suar muito para se manter com
dignidade, pensou quando enfim dava sinal ao ônibus que lhe levaria à uma das
avenidas mais chiques e egoístas da cidade. Deu uma última olhada na mulher
estátua, e sentiu por não poder ajudá-la. Afinal, com o pouco que tinha, tinha
que sustentar a si e a seu pequeno filho.
Quando o ônibus partiu, pareceu recordar-se de uma outra velha
moradora de rua que perambulava sempre embriagada próximo a seu bairro, na
região do Grajaú, no extremo sul da cidade. Aliás, era parecidíssima com esta.
Talvez fosse a mesma. Provavelmente mudara de local de petição, mas não mudara
sua lamentável situação. Sentiu menos pena da velha.
O ônibus em que partira já estava agora fora do campo de visão dos
que chegavam no ponto. Em meio a nova remessa de passageiros que chegava para
esperar seu transporte, atravessava um boné colorido e surrado. Seu portador
carregava uma sacola plástica contendo qualquer coisa e usava chinelos bem
gastos.
O garoto de aparentes 12 anos se esquivava dos braços apressados
que ameaçavam lhe trombar. Assim que livre da aglomeração concentrada do ponto
de ônibus, o garoto avistou a pobre senhora de quem a jovem anterior não
sentira tanta pena.
Notou seu rosto muito magro e diversos ferimentos espalhados pelo
corpo. Como podia suportar aquelas lesões todas àquela idade sem qualquer
cuidado médico? A velha não se mexia, e o garoto pôde observar bem sua
fisionomia.
Pensou reconhecer aquela expressão facial. Não seria ela uma
senhora que ouvira pedir esmola dentro do metrô num discurso melancólico na
semana passada? Provavelmente sim. O pouco que conquistou dos passageiros
naquela viagem com certeza não fora o suficiente para mais que uma ou duas
refeições. Dificilmente iria sair daquela situação sem amparo.
Pensou em oferecer um dos pacotes de feijão que levava em sua
sacola. Mas não podia. Tudo que viera comprar no mercadinho popular de Santo
Amaro foi a mando de sua avó, que o esperava em casa para preparar uma simples
refeição a ele e seus dois irmãos mais novos. Como o era o mais velho, viera
sozinho. Já conhecia bem a região do Largo Treze. Se acostumara rápido com
aquelas visões e pessoas em semelhante situação. Pensando bem, aquela expressão
lhe parecia familiar a cada esquina do quarteirão. E a velha se assemelhava a
muitas outras que já vira em seu pouco tempo de vida urbana.
Distraído, encarando os
cachorros pulguentos ao lado da senhora, o menino trombou em um corpo não tão
apressado como os outros que se desviavam. O esbarrante pedira desculpa e
murmurou uma benção ao garoto, que continuou seu trajeto descendo a alameda sem
mais olhar para trás.
O abençoador passava agora em frente a senhora com quem o anterior garoto pensava estar já habituado. De imediato, reconheceu a antiga moradora de rua, que habitara desde muito a calçada em frente à capela do Largo Treze. Desde os tempos de sua formação como padre quando frequentava aquela capela, a pobre senhora já se instalava no local, com sua perna fraturada e ineficiente, e sua mão estendida a pedir ajuda. Sempre esteve ali, incapaz de se locomover nem se levantar. Era ela mais uma das vítimas do desprezo burocrático da saúde pública. Não fazia ideia de como viera parar ali. Mas tinha certeza que desde que chegara, nunca mais teria saído.
O abençoador passava agora em frente a senhora com quem o anterior garoto pensava estar já habituado. De imediato, reconheceu a antiga moradora de rua, que habitara desde muito a calçada em frente à capela do Largo Treze. Desde os tempos de sua formação como padre quando frequentava aquela capela, a pobre senhora já se instalava no local, com sua perna fraturada e ineficiente, e sua mão estendida a pedir ajuda. Sempre esteve ali, incapaz de se locomover nem se levantar. Era ela mais uma das vítimas do desprezo burocrático da saúde pública. Não fazia ideia de como viera parar ali. Mas tinha certeza que desde que chegara, nunca mais teria saído.
Na verdade, era surpreendente como prevalecera tanto tempo, já que
o Padre voltava ao local agora já faziam mais de anos. Já a ajudara diversas
vezes, e mesmo sabendo que mais um suprimento momentâneo não iria salvá-la, o
velho Padre, que devia ter mais ou menos a mesma idade da senhora, agachou-se a
segurar a mão estendida da pobre moradora de rua, e suspirando uma benção
deixou algumas moedas e um pacote de pães que comprara mais cedo, no caminho à
capela.
Fechando o portão atrás da velha, o Padre entrou na Capela se benzendo. A velha, que agora comia desesperadamente um dos pães a seco, permaneceu sentada no fétido colchão com uma das mãos estendidas aos passantes.
Fechando o portão atrás da velha, o Padre entrou na Capela se benzendo. A velha, que agora comia desesperadamente um dos pães a seco, permaneceu sentada no fétido colchão com uma das mãos estendidas aos passantes.